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Mapeando canteiros


Vejo muitos canteiros de obra pela cidade, aqui mesmo na minha esquina existem entre três ou quatro. Passo por eles, olho para dentro das obras e vejo muitas mãos trabalhando, capacetes coloridos, uma estrutura que constantemente se modifica, uma estética de uma arquitetura porosa, amorfa, indefinida em sua forma. Ali ainda tem uma indefinição entre matéria-prima e estrutura, cimento e arquitetura.

A sonoridade do canteiro também expõe sua concepção amorfa, vários ruídos incômodos por sua diversidade, som da britadeira, do caminhão de cimento, do corte da madeira, das estacas da fundação, ruídos, nada mais que isso. Sons que não formam nada, não são agradáveis, confusos e sobrepostos. Impossível não ouvi-los nas cidades. Essa montagem de sonoridades é aberta, uma colagem de ruídos, a fronteira entre processo e arquitetura.

Em meio a um ambiente acabado das cidades os canteiros destacam-se, aquela área cercada, entreaberta, os múltiplos sons, pessoas entrando e saindo, capacetes coloridos. Os olhares são atraídos pelo ruído, pelo tom de rastro que esse local inspira. Dias e dias observando esses locais, nas ruas e nas janelas de casa. É difícil no atual contexto das cidades, com a intensificação da especulação imobiliária, não abrir a janela e dar de cara para um canteiro de obras, eles tem batido em muitas portas, tem chegado a muitas janelas.

O canteiro de obras é um lugar codificado, de performance fabril. Observo e vejo uniformes diferentes, ferramentas que não compreendo o uso, capacetes coloridos e materiais diversos. A placa em frente da obra dá algumas chaves de leitura sobre os indivíduos e as empresas atuantes naquele terreno. A princípio, o canteiro abriga uma forma de produção comunitária, um “fazer junto”, mas aos poucos, ampliando a imagem, olhando o dia-dia da obra é possível compreender que essa produção é marcada pela verticalidade, a cor dos capacetes expressa a hierarquia entre o saber acadêmico do engenheiro e do arquiteto, e o saber da experiência dos pedreiros e metres de obras. A diferença entre trabalho manual e intelectual é expressa esteticamente, se materializa nas roupas, os trabalhadores manuais usam uniforme com uma série de camadas, camisa de manga comprida, macacão sobreposto de proteção para coluna, luvas, botas, capacetes, protetores de ouvido, e, em alguns casos, os engenheiros e arquitetos são rapidamente identificados por sua vestimenta “leve” bota, calça jeans, blusa e capacete de cor diferenciada e, as vezes, um papel em formato de tubo nas mãos. Em um olhar distanciado, vê-se muitas mãos, muitos pés, muitas pessoas, vê-se no canteiro uma diversidade e uma prática comunitária, no entanto, um “zoom” nessa imagem indica que não se trata de um espaço horizontal, mas sim vertical, uma edificação dentro da edificação, uma arquitetura que é vertical e hierárquica desde sua produção. O canteiro de obras é o local da quebra, ruptura entre desenho e desígnio, criação e execução.

O canteiro de obras faz parte dos bastidores da arquitetura, uma parte distante dos holofotes do palco, composta por fragmentos e rastros de materialidade “suja” e bruta que forma um quebra-cabeças de peças dispersas pelo espaço. Os agentes desse espaço responsáveis pelo trabalho manual são anônimos, não tem seus nomes escritos e placas e nos projetos, trata-se de uma força de trabalho marcada pela quantificação, tratados como números, processo cada vez mais recorrente em um cenário de terceirizações. O anonimato dos pintores, pedreiros, mestres de obras revela a ausência do lugar desses indivíduos como agentes ativos, produtores. No entanto, sob os fazeres verticalizados, vive a natureza amorfa da arquitetura, porosa e que permite a incorporação de ruídos, de dissidências, nesse ponto, o canteiro também pode ser um lugar de desvio.


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